Carnaval 2017: como a crise recuperou o senso crítico das escolas de samba
O riso e os momentos de celebração são fundamentais para a permanência das mais diversas culturas que compõem a família humana. E nós, brasileiros, somos conhecidos mundo afora pela nossa alegria, que se deve muito aos povos originários da terra, assim como aos africanos: ambos carregam consigo a sabedoria de que o sorriso é uma boa forma de resistência às mazelas sociais a que foram (e continuam sendo) submetidos ao longo do processo de colonização.
No caso do samba, letras que funcionam como instrumento de protesto e denúncia também são elemento fundamental para o senso de pertencimento e o resgate da autoestima que foram negados ao povo preto por conta da Diáspora Africana, resultado da imigração forçada durante o período de expansão imperialista europeia. O nome samba consta na língua cokwe e quicongo, ambos falados na Angola, e batiza o ritmo que surgiu como espontânea tentativa da população afro de resistir à desumanização promovida com a finalidade de legitimar a exploração dos corpos pretos ao longo do processo de formação da nação brasileira.
Começando nas batucadas em roda que traziam alguma lembrança da casa África para as comunidades pretas, o registro na Biblioteca Nacional do que é considerado o primeiro samba aconteceu exatamente há 100 anos. Chama-se “Pelo telefone”, de Ernesto dos Santos, o Donga. Era um samba-carnavalesco que seria usado no carnaval seguinte, em 1917.

Donga, sambista autor do 1º samba-carnavalesco (Reprodução)
Na época de Donga, o samba era, basicamente, uma forma de gente preta e iletrada, que sempre sustentou a economia brasileira fazendo os trabalhos mais pesados e essenciais, ganhar visibilidade social. Era também um tempo em que o a camada dominante tentava desafricanizar o corpo e a alma brasileira, dando sequência ao embranquecimento que posteriormente fez parte das políticas oficiais do Estado brasileiro para receber imigrantes no governo Vargas.
Samba do morro X samba da cidade: a exploração econômica
Dez anos depois, o samba mais próximo do que conhecemos hoje surge, junto com o embrião das escolas de samba, a Deixa Falar. O termo “escola” foi inserido inclusive como forma de trazer alguma valia para o sistema social dominante, passando a ideia de erudição.
Maurício Barros de Castro, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afirma (em entrevista à Carta Capital) existir uma constante tentativa de afastar o samba da sua origem nos morros, com forte influência das demandas da indústria cultural: o samba começou a ser mais aceito depois que os batuques passaram a ser compostos e cantados por pessoas brancas, como Noel Rosa e Ary Barroso e, assim, foi finalmente se tornando um dos protagonistas no Carnaval.
No território do teatro musicado nos anos 30, foi surgindo o samba-canção: de andamento lento, melodia romântica e letra sentimental, mais ao gosto das elites, e talvez mais “limpo”, como requeriam as ideias de eugenia propagadas pelo racismo “científico”, menosprezando expressões afro-brasileiras, como afirma Nei Lopes, sambista, escritor e autor de obras que buscam a difícil tarefa de compilar as origens do samba.
Assim, após a estruturação da indústria fonográfica, foram surgindo as distinções entre os sambas “do morro” e “da cidade”: as criações dos núcleos favelados para os enredos das escolas de samba e que os compositores do asfalto transformavam em matéria-prima para o produto industrializado.
O efeito positivo da crise no Carnaval 2017
A ousadia de escolas como a Imperatriz Leopoldinense e Portela no carnaval desse ano foi novidade num Carnaval que, desde os anos 90, vinha sendo silenciado pelos patrocinadores – boa parte deles empresas, organizações públicas e governos sem interesse em polemizar. Junto a isso, foi se perdendo a personalidade do discurso das escolas, assim como a denúncia dos preconceitos, das injustiças e da desigualdade social que transcorrem a história brasileira.
A crise resultou na queda dos patrocínios, o que reabriu o território para que as escolas voltassem a fazer enredos autorais, propostos pelos carnavalescos, não por uma empresa. Seguindo essa linha, a Imperatriz Leopoldinense decidiu quebrar o silêncio sobre os frutos envenenados que os indígenas vêm colhendo por conta da ganância dos herdeiros dos colonizadores: fome, exclusão social e outros problemas trazidos pela exploração irresponsável da Mãe Terra.

Cahê Rodrigues, carnavalesco da Imperatriz, visitando as tribos do XIngu (Reprodução – Arquivo pessoal)
A escola causou barulho – antes mesmo de desfilar – com a bancada ruralista ao homenagear as tribos do Xingu, que colocou um holofote sobre o preconceito e o racismo com que os indígenas continuam a ser tratados. Entrou na avenida à meia-noite do domingo 26.02, emocionando o público ao dar destaque para as lideranças indígenas, como o cacique Raoni, além de alegorias como a “Belo Monstro” e a ala dos agrotóxicos, mesmo com a represália de setores do agronegócio.

Cacique Raoni no desfile da Imperatriz (Alexandre Durão- G1)

Ala “Um rio que era doce” da campeã Portela (Reprodução)
A Portela, que entrou no dia seguinte com o enredo “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver um rio passar”, do carnavalesco Paulo.
Barros, também mencionou o desastre ambiental causado pela Samarco no Rio Doce: a quarta ala, chamada de “Um rio que era doce”, trouxe pescadores enormes, cobertos de lama, com as mãos para o céu, lembrando o desespero que ainda paira pela região atingida.
No chão, os integrantes da escola também levavam cartazes com os dizeres “crime, desespero, ganância, justiça e sem água”.
O desfile rendeu à Portela o título de vencedora desse ano. Mas, com certeza, o campeão desse carnaval foi o samba, que resgatou a sua característica essencial: celebrar o fato de estarmos vivos e lembrar que, enquanto populações inteiras forem deixadas para trás, não poderemos nos intitular humanidade.
Texto por Damaris Souza

Comentários
Loading…